A gestação, o parto e os cuidados com a primeira infância preparam o ser humano para a vida. O bom desenvolvimento físico, psíquico e social da criança depende em grande parte dos cuidados dispensados neste fase, isto é, da atenção, nutrição, estimulação adequada, acolhimento, compreensão e carinho. Quando estes cuidados faltam, são inadequados ou insuficientes as consequências podem ser decisivas e de longa duração determinando a saúde, a capacidade de aprender, de se relacionar e de regular emoções.
Neurocientistas tem pesquisado sobre o desenvolvimento do cérebro infantil e chegaram à conclusão que o cuidado caloroso e responsivo exerce uma função biológica protetora, diminuindo ou eliminando os efeitos adversos do stress ou de traumas posteriores. Gunnar (1996) avaliou as reações de crianças a acontecimentos adversos, físicos ou psicológicos, medindo a taxa de um hormônio esteróide presente na saliva, chamado cortisol. Acontecimentos adversos ou traumáticos elevam a taxa de cortisol no indivíduo, o cortisol altera o cérebro, tornando-o vulnerável a processos que destroem os neurônios reduzindo o número de sinapses em certas regiões do cérebro, o que significa que experiências traumáticas ou stressantes podem minar o desenvolvimento neurológico e deteriorar o funcionamento cerebral.
As descobertas de Gunnar mostram que crianças que tiveram cuidados adequados e sensíveis no primeiro ano de vida, são menos propensas a responder a um pequeno stress produzindo cortisol, e mesmo quando respondem produzindo cortisol, podem mais rápida e eficientemente desativar esta resposta. “Esse efeito protetor acompanha-os até o fim da infância: crianças na escola elementar, com histórias de ligação segura com o cuidador, são menos propensas a apresentarem problemas comportamentais (Shore, 2000, pág.65.).”
Desde o nascimento é possível observar nas crianças diferenças de temperamento, alguns são mais sociáveis e adaptáveis e outros mais retraídos e quietos, com certeza os genes desempenham um papel importante nesta determinação. Mas, mesmo antes do nascimento, o ambiente intra-uterino pode ter uma influência decisiva, um desenvolvimento significativo do cérebro ocorre quando o bebê ainda está no útero, o que torna a nutrição adequada da gestante muito importante, determinando sua saúde e a saúde do bebê que está sendo gestado.
O uso de substâncias químicas durante a gestação pode trazer alterações significativas. O uso de álcool durante a gestação provoca mudanças na atividade cerebral, …“estudos de eletroencefalogramas demonstraram que as ondas cerebrais de bebês nascidos de mães alcoolátras têm um padrão distinto de atividade reduzida, especialmente no hemisfério esquerdo (Janzen, et al., 1995).
” Mães que bebem muito durante a gestação correm o risco de terem seus filhos com a Síndrome Fetal do Álcool (SFA) que tem como conseqüências: baixo peso ao nascer, deficiências de crescimento posteriores, anormalidades faciais, e diversos distúrbios neurológicos.
O fumo durante a gravidez está associado com problemas comportamentais nas idades pré-escolar e escolar e propensão a desenvolver problemas de conduta na vida adulta (Wakschlag, et al., 1997).
Crianças expostas à cocaína no útero também correm muitos riscos, apresentam distúrbios de atenção, de processamento de informações, de aprendizado e de memória, assim como sinais fisiológicos que incluem mudanças no ritmo cardíaco, na pressão arterial e nos ciclos diários de cortisol (Mayers, 1996).
O cérebro de um feto produz praticamente duas vezes mais neurônios do que vai eventualmente precisar, o que funciona como uma margem de segurança, aumentando as chances dos recém-nascidos virem ao mundo com cérebros saudáveis. Ao nascimento, o cérebro humano está muito pouco desenvolvido, a maioria dos 100 milhões de nerônios ainda não estão ligados em rede, isto é, não estabeleceram sinapses.
A principal tarefa do desenvolvimento cerebral inicial é a formação e o reforço dessas ligações. “As conexões entre os neurônios se formam à medida que a criança em crescimento experimenta o mundo que a cerca e estabelece ligações com os pais, com os membros de família e com os outros cuidadores (Shore, 2000 pág.51).”
Esta rede de sinapses, ao serem utilizadas e reforçadas na vida diária, passam a fazer parte do circuito permanente do cérebro, caso não sejam utilizadas frequentemente ou com certa continuidade, elas serão eliminadas. Logo, a experiência desempenha um papel fundamental no desenvolvimento do “circuito cerebral” de uma criança.
O leite materno é uma fonte importante de energia e nutrientes e também de proteção contra infecções e doenças. E o ato de amamentar desde as primeiras horas de vida promove a formação do vínculo, facilitando e intensificando a interação dinâmica entre mãe e bebê.
Estudos sugerem que os nutrientes presentes no leite materno tem um efeito significativo também no desenvolvimento neurológico infantil. Anderson, et al. (1999) realizaram uma meta análise (Breast-feeding and cognitive development: a meta-analysis), compararam 20 estudos sobre o desenvolvimento cognitivo infantil e a amamentação no peito e chegaram à conclusão que:
– A amamentação no peito é efetivamente responsável por um melhor desenvolvimento cognitivo global, representando um aumento de 3,16 pontos no Q.I. em comparação com crianças amamentadas com mamadeiras (leite em pó, formula preparada para substituir o leite materno).
– A amamentação no peito favorece mais os recém nascidos de baixo peso representando um aumento de 5,18 pontos no Q.I. em comparação com crianças de peso normal ao nascimento amamentadas também no peito, que tiveram um aumento no Q.I. de 2,66 pontos.
– Há vantagens relacionadas ao prolongamento da amamentação no peito, os efeitos positivos continuam aumentando, sendo que dos 4 aos 6 meses o benefício atinge o seu ápice. Quando ocorre negligência por parte dos pais, quando o vínculo estabelecido é fraco, a criança se torna propensa à violência. É o que demonstram pesquisas de longo prazo realizadas por Sroufe e seus colaboradores que estudaram crianças cujos principais cuidadores estavam emocionalmente indisponíveis nos primeiros anos de vida, estas crianças realmente demonstraram maior agressividade e problemas de conduta na infância e adolescência (Renken, et al. 1989).
A resposta em relação ao trauma e a negligência variam de acordo com diferenças individuais e com a organização de seus sistemas nervosos particulares. Crianças que reagem menos expressivamente a sensações, e têm um baixo tônus muscular, tendem a responder tornando-se mais introspectivas, retraídas, passivas e deprimidas. Por outro lado, crianças que buscam estímulos sensoriais e são mais ativas, tendem a se tornar agressivas nessas circunstâncias (Greenspan, 1997).
Dawson e seus colegas da Universidade de Washington (1994) que estudam sobre o impacto da depressão materna sobre o desenvolvimento infantil encontraram algumas evidências de que bebês nascidos de mães que sofrem de depressão durante a gravidez são menos ativos e responsivos ao estímulo social do que outros recém-nascidos.
Quanto a depressão pós-parto, concluiram que quando a depressão das mães acaba na época em que seus filhos completam seis meses, os bebês parecem não sofrer conseqüências significativas. Mas, quando as mães continuam deprimidas após o sexto mês dos bebês, seus filhos tendem a apresentar problemas comportamentais e mais tarde deficiências cognitivas, sendo que o período mais crítico é o dos seis aos dezoito meses. Quanto mais persistente e prolongada for a depressão da mãe, tanto maior é a possibilidade do filho ter distúrbios comportamentais. Nos casos de depressão é muito importante o papel da família, o pai ou outros membros podem moderar o impacto adverso da depressão para o bebê e encorajar a mãe a buscar o tratamento necessário.
Quando a criança perde a mãe por algum motivo ou é abandonada e é institucionalizada, a privação da figura materna tem efeitos particularmente negativos. No desenvolvimento intelectual os processos de desenvolvimento da linguagem e da abstração são os mais afetados, e no processo de desenvolvimento da personalidade é a capacidade de estabelecer e manter relações interpessoais profundas e significativas e a capacidade de controlar os impulsos em benefício de objetivos de longo alcance que será afetada. O período em que inicia a privação determina o grau do comprometimento, a privação durante o primeiro ano de vida afeta mais o desenvolvimento da linguagem e o raciocínio abstrato e indiretamente o Q.I. do que se ocorrer mais tarde (Bowlby, 1988).
É possível previnir ou minimizar estes efeitos da institucionalização precoce de crianças aumentado a proporção do número de funcionários de acordo com a quantidade de crianças, garantindo que as crianças tenham um cuidador principal, e outro ou outros segundários que conheçam o desenvolvimento infantil e estejam qualificados para promover a estimulação adequada.
Quanto a recuperação dos efeitos da privação da figura materna, estudos mostram que as deficiências sociais podem ser mais difíceis de se reverter, do que as cognitivas (Frank, et al., 1996).
A privação econômica também afeta o desenvolvimento infantil, na medida em que compromete fatores como: a nutrição da mãe e da criança, o acesso à assistência médica, a segurança dos seus ambientes físicos, o nível de stress vivido por seus pais e outros cuidadores, a qualidade e continuidade dos seus cuidados diários, a exposição à violência e a estimulação das crianças aumentando o risco de terem dificuldades na escola (Ramey, et al., 1996).
Pais que foram filhos de pais desatentos, inadequados, negligentes, psiquicamente doentes ou afetados por sérias restrições econômicas tem uma maior probabilidade de serem pais também inadequados por falta de um modelo sadio. A principal tendência é que reproduzam parcial ou integralmente, de acordo com o seu grau particular de comprometimento, o ciclo de maus tratos ou inadequação, sejam no nível de cuidados físicos e/ou psíquicos. Uma das formas de se impedir que este ciclo se repita é atuando preventivamente junto ao desenvolvimento na primeira infância. Muitos projetos vem sendo desenvolvidos com o intuito de estimular e promover o desenvolvimento inicial de crianças, alguns dos mais conhecidos exemplos incluem o Perry Preschool Project, o North Carolina Abecedarian Project, o Infant Health e Development Program, e o Head Start and Early Head Start nos Estados Unidos; o Integrated Child Development Service (ICDS) na India; e o Inicial Education no México.
Por exemplo, crianças que participaram do Integrated Child Development Service (ICDS) na India, obtiveram uma pontuação maior em testes de aptidão intelectual, maior freqüência escolar, melhor atuação acadêmica e comportamento mais adequado do que crianças que não participaram (Chaturvedi and others 1987). ICDS é o maior rograma de Desenvolvimento da Primeira Infância no mundo, atendendo 32 milhões de crianças. No Brasil, crianças pobres que freqüentaram 1 ano de pré-escola ermaneceram na escola 4 anos mais do que as crianças que não frequentaram pré-escola (Barros e Mendonça 1999). Para cada ano de pré-escola, as crianças tem de 7 a 12 porcento de acréscimo no seu potencial de renda futura, com larga vantagem adquirida por crianças de famílias cujos pais tem o menor grau de escolaridade (Barros e Mendonça 1999). O Projeto Abecedarian mostrou que a probabilidade das crianças serem retidas no mesmo ano durante a escola primária diminuiu para quase 50 porcento quando as crianças foram atendidas nos programas de Desenvolvimento da Primeira Infância (Ramey and others 2000). Estudos também mostram que crianças que vem de famílias com menor educação formal, adquirem os maiores benefícios cognitivos e sociais, e os efeitos da intervenção precoce são de longa duração. Ganhos como estes são reais e verificáveis, e provam sem dúvida que intervenção precoce funciona (Mustard, 2002, pag.6).” Os neurocientistas através de suas pesquisas complementaram e confirmaram o que aprendemos com a psicologia sobre a grande importância dos cuidados com a primeira infância para o desenvolvimento global do ser humano. É possível e necessário atuar através de projetos para que o desenvolvimento infantil seja mais sadio. O retorno econômico dos investimentos no desenvolvimento da primeira infância são altos, na medida em que trazem vários benefícios sociais, diminuindo a incidência de casos de delinqüência juvenil, criminalidade e violência, promovendo a saúde psíquica garantindo uma melhor e maior produtividade dos cidadões adultos, diminuindo também a pobreza através de um melhor “Estudos destas intervenções ilustram o particular benefício do aproveitamento escolar que terá como resultado, adultos mais aptos e preparados para o trabalho e para uma vida adulta mais digna.
Anderson, J.W., Johnstone, B.M. and Remley, D.T. 1999. Breast-feeding and cognitive development: A meta-analysis. American Journal of Clinical Nutrition. 70: 525-35
Bowlby, J. 1988. Cuidados Maternos e saúde mental. São Paulo, SP: Martins Fontes Editora.
Dawson, G., D. Hessl, and K. Frey. 1994. Social influence on early developing biological and behavioral systems related to risk for affective disorder. In Development and Psychopathology. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 759-779.
Mustard, J.F. 2002. Early child development and the brain – The base for health, learning, and behavior throughout life. In From Early Child Development to Human Development. Washington, D.C.: The World Bank.
Frank, D.A, P.E.Klass, F. Earls, and L. Eisenberg. 1996. “Infants and young children in orphanages: One view from pediatrics and child psychiatry.” Pediatrics 97 (4) 573.
Greenspan, S.I. and S. Wider. 1997. Facilitating Intellectual and Emotional Growth in Children with Special Needs. Reading, MA: Addison Wesley.
Gunnar, M. R. 1996. Quality of care and the buffering of stress physiology: Its poptential in protecting the developing human brain. University of Minnesota Institute of Child Development.
Janzen, L.A, J.L. Nanson, and G.W. Block.1995. “Neuropsycological evolution of preeschoolers with FAZ.” Neurotoxicol Teratol 17 (May/June): 273-279.
Mayers, L.C. 1996. Early experience and developing brain: The model of prenatal cocain esposure. Apresentado na conferencia: O desenvolvimento cerebral das crianças: Novas fronteiras para a pesquisa, politica e prática. Universidade de Chicago, 13 e 14 de junho.
Ramey, C.T. and S. Landesman Ramey.1996. “Prevention of intellectual disabillities: Early interventions to improve cognitive development.” Birmingham: University of Alabama Civitan International Research Center.
Renken, B., B. Egeland, D. Marvinney, S. Mangelsdorf, and L.A. Sroufe. 1989. Early chidhood antecedents of aggression and passive-withdrawal in early elementary school. Journal of Personality 57(2):257-81
Shore, R. 2000. Repensando o Cérebro – Novas Visões sobre o Desenvolvimento Inicial do Cérebro. Porto Alegre, RS: Editora Mercado Aberto.
Wakschlag, L. S., B. B. Lahey, R. Loeber, S.M. Green, R. A. Gordon, and B.L. Leventhal. 1997. “Maternal smoking during pregnancy and the risk of disorder in boys”: Achieves of General Psychiatry.