Ter conhecimento sobre o desenvolvimento motor, os diversos estágios do brincar, técnicas de cuidados e sobre a importância do vínculo são imprescindíveis ao educador, mas mesmo estes conhecimentos tão importantes não garantem relações de qualidade. Tive esta percepção ao observar educadoras atuando em um berçário de São Paulo. Educadoras experientes que tinham bons vínculos com os bebês e crianças que atendem e realizavam o seu trabalho com eficiência, mas que não davam o tempo necessário para a resposta destas crianças durante os cuidados.
Estava faltando alguma coisa muito importante que Judit Falk no seu texto Quando nós tocamos o corpo do bebê aponta: “Se a criança tiver confiança na possibilidade de influenciar naquilo que ocorre com ela, se puder sentir-se sujeito participante e não objeto manipulado, isso irá reforçar seu sentimento de eficiência e de competência”
Os cuidados diários são momentos especiais para a construção da subjetividade do indivíduo e para o estabelecimento do relacionamento entre educador e bebê ou criança. Todo o conhecimento sobre o desenvolvimento infantil permanece apenas como conhecimento teórico e de relativa utilidade quando não se reconhece o valor e a importância dos cuidados diários. Identifiquei, ao observar o berçário, dois fatores que influenciam na qualidade das relações durante os cuidados. São elas: A dificuldade de estabelecer um diálogo não verbal com as crianças que ainda se encontram em um estágio pré-verbal e o compromisso com a rotina diária do berçário.
A dificuldade de estabelecer um diálogo não verbal com as crianças que ainda se encontram em um estágio pré-verbal
Embora hoje haja muito conhecimento sobre o desenvolvimento infantil, sobre neurociência e se reconheça muitas vezes que o bebê não deve ser um mero receptáculo de cuidados e higiene, ainda há muita dificuldade em estabelecer um diálogo com crianças que ainda não desenvolveram a capacidade de comunicação verbal.
A comunicação entre os adultos é toda permeada por sinais não verbais, gestos, pausas e subentendidos (códigos sociais). Mas, ainda assim, a comunicação é pautada principalmente na linguagem, na comunicação verbal. O que faz com que tenhamos dificuldades para estabelecer uma comunicação verdadeira com o bebê ou criança pequena que ainda não tenha desenvolvido plenamente a comunicação verbal.
Nos cursos de formação continuada que ministro pude perceber pelas falas e observações dos participantes que o sentimento de que as crianças “não compreendem”, simplesmente porque ainda não falam, ainda é bem comum e presente, mesmo entre profissionais da área de educação infantil.
O compromisso com a rotina diária
A rotina diária de cuidados oferece segurança e tranquilidade para as crianças. No entanto, a rotina não pode ser rígida ou estar acima das necessidades individuais de cada criança. É necessário ter flexibilidade para que esta rotina seja sempre repensada e reavaliada tornando-se viva e pulsante, sendo muito mais um ritmo de atividades e cuidados diários do que uma rotina. Pois o dicionário nos mostra a inadequação do uso desta palavra para descrever o que acontece no dia-a-dia de uma instituição de educação infantil.
Rotina – s.f. Caminho utilizado normalmente; itinerário habitual.
Fig. Hábito de fazer uma coisa sempre do mesmo modo, mecanicamente; repetição monótona das mesmas coisas; apego ao uso geral, sem interesse pelo progresso.
Enquanto ritmo, tem a definição abaixo:
Ritmo – s.m. Sucessão de tempos fortes e fracos que se alternam com intervalos regulares na natureza e nas artes (na linguagem, na poesia, na música); cadência, compasso: ritmo poético. A palavra vem do grego rhythmos, que significa movimento compassado.
O tempo se torna um inimigo quando a rotina é uma repetição mecânica ou se sustenta o pressuposto de que as atividades devem ser realizadas sempre coletivamente, ou seja, com todas as crianças ao mesmo tempo. Quando há esta obrigatoriedade, os profissionais sentem que não há tempo suficiente para esperar pela resposta e participação da criança nos seus cuidados cotidianos.
No início da vida, as crianças não têm noção de tempo. Como a criança vive no tempo presente, é a repetição das atividades diárias, o ritmo que traz uma noção básica de tempo. Somos nós, os adultos, que ajudamos a criança a desenvolver pouco a pouco a noção de tempo.
“A medida que a criança vai adquirindo maior distanciamento em relação à experiência imediata, bem como o conhecimento das tradições do seu grupo social, passa ela então a interiorizar o tempo como parâmetro de ação, com as suas três categorias” Monique Augras
No entanto, a vivencia do tempo não é sempre a mesma. O mesmo lapso de tempo pode ser vivido de forma muito diferente, pode ser percebido como um tempo muito grande quando precisamos esperar por alguém ou por alguma coisa; ou quando temos uma tarefa a cumprir e um prazo muito curto para realizá-la a vivencia é totalmente diferente, sentimos que o tempo nos escapa.
Os antigos gregos representavam o tempo através de dois deuses, Chronos e Kairós.
Chronos é o senhor do tempo, ele representa a fome devoradora do tempo que a tudo deteriora trazendo a velhice e os efeitos da passagem do tempo. É o tempo cronológico, do relógio ou do cronômetro que está relacionado a este Deus grego.
Kairós é o Deus do tempo oportuno, de natureza qualitativa que representa o melhor instante no presente, o momento indeterminado no tempo, ou seja, o instante em que se consegue afastar o caos e abraçar a felicidade. O momento em que algo especial acontece.
A Abordagem Pikler nos ensina a transformar a rotina dos cuidados diários em um ritmo vivo e pulsante no qual Kairós está presente, ou seja, é valorizado o tempo das relações, o vínculo é cultivado, a autoestima e o sentimento de eficiência e competência são desenvolvidos.
A Abordagem Pikler reconhece claramente que as necessidades físicas e psicológicas não podem ser separadas nos primeiros anos de vida e nos apontam alguns caminhos para tornar vivo o ritmo de cuidados, são eles:
Falar com o bebê descrevendo as ações que serão realizadas
Este é apenas o primeiro passo para que se estabeleça um diálogo que poderá se transformar em uma rica comunicação.
Anna Tardos no Seminário de Aprofundamento de Florianópolis em novembro de 2015 afirmou que: “Falar com os bebês desde o início, não é somente para que eles aprendam a falar, mas sim para que o adulto esteja presente diante do bebê”
Nós adultos, ao contrário do bebê ou criança pequena, não costumamos viver no presente. Geralmente estamos relembrando o passado, alguma coisa que nos aconteceu, ou nos preocupando com o futuro, com o que ainda irá acontecer. Para nós adultos estar verdadeiramente presente é um desafio. Requer consciência, treino e atenção.
Ao mantermos o contato visual e falarmos com o bebê descrevendo nossas ações durante os cuidados, além de chamarmos a atenção do bebê para o que está acontecendo, nós também nos tornamos atentos aos nossos próprios atos, nos tornamos presentes.
Nunca fazer nada “para” o bebê ou criança pequena, mas sim fazer “com” eles
Sempre convocar a participação do bebê ou criança pequena. O adulto comunica as suas intenções e espera pelos movimentos da criança antes de tomar a iniciativa da ação.
Observar
A observação de vídeos ou de educadoras é uma ferramenta muito útil e importante na formação do pedagogo Pikler. Ao observarmos uma troca de fraldas ou um banho é possível perceber que o tempo cronológico utilizado para a tarefa que se está realizando não é muito maior que o tempo necessário em qualquer outra instituição ou creche para se realizar a mesma tarefa, no entanto, as relações são cultivadas durante os cuidados, Kairós está presente, tem seu lugar reservado, permitindo que muitas coisas especiais aconteçam.
Observar uma educadora experiente é em si uma experiência muito rica que promove aprendizado. É possível compreender como é possível estabelecer um diálogo rico e verdadeiro. E acompanhar as descobertas e aprendizagens do bebê ou criança pequena de forma calorosa e prazerosa.
Observando o bebê, atentando para os pequenos detalhes, buscando sinais e esperando por uma resposta estamos também presentes, reagindo e interagindo ativamente. Só então, poderemos nos colocar no lugar do bebê assim como Emmi Pikler nos indica: “Os olhos não bastam para ver. Tem que saber observar, sentir e pensar no lugar da criança, poder entrar no seu mundo, identificar-se com ele” (O que sabe fazer o seu bebê? 1.938).
Conclusão
Vivemos em um mundo em que a rapidez está relacionada à eficiência. A pressa é nossa companheira diária e “ninguém tem tempo a perder”. O adulto que vive neste mundo frenético precisa se adaptar ao mundo da criança porque a construção do indivíduo continua se dando no tempo, através da relação entre o adulto e a criança. É necessário tempo para a formação dos vínculos e para a construção da individualidade. Logo, o adulto que pretende trabalhar pedagogicamente com crianças de 0 a 3 anos precisa desacelerar, encontrar formas de se tornar presente e de acompanhar o tempo da criança. Saindo do mundo adulto e se encontrando com a criança no presente, no aqui e no agora.
Bibliografia
AUGRAS, Monique – 1994. “O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico”. Petrópolis – RJ 4º edição. Editora Vozes.
FALK, J. & VINCZE, Maria – 2006 – “Bathing the baby – The art of care” Instituto Pikler-Lóczy de Budapeste – Hungria.
FALK, J. (organizadora) – 2016. “Abordagem Pikler, educação infantil”. São Paulo- SP Editora Omniciência
FEDER, Agnès Szanto – 2014. “Una mirada adulta sobre el niño en acción – El sentido del movimiento en la protoinfancia” Buenos Aires – AR. Ediciones Cinco
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Olá Andressa, Fico feliz por saber que você gostou do post.