O computador e as mídias eletrônicas, enquanto ferramenta de trabalho, informação, pesquisa e comunicação tornou-se indispensável para a nossa cultura. A Pandemia intensificou ainda mais esse processo, ajudando a tornar imprescindível o uso de computadores, celulares, smartphones e tablets. Tornou-se tão presente na atualidade que hoje a tecnologia está também na primeira infância e há uma grande pressão para se apresentar a tecnologia cada vez mais prematuramente às nossas crianças. No entanto, será que o uso recreativo, os jogos eletrônicos são, de fato, adequados?
A distância entre a realidade inquietante das pesquisas disponíveis e o conteúdo frequentemente tranquilizador e até mesmo entusiasta dos jornalistas em relação aos jogos eletrônicos é enorme. A potência econômica das indústrias recreativas enaltece as qualidades dos jogos eletrônicos afirmando que eles promovem o aumento da atenção sustentada e seletiva e o desenvolvimento de habilidades de coordenação motora e visoespaciais, por exemplo. No entanto, Michel Desmurget, pesquisador e escritor francês especializado em neurociência cognitiva afirma que: “A informação oferecida ao grande público carece singularmente de rigor e confiabilidade” e ainda questiona pesquisas que pretendem comprovar os benefícios do uso de mídias e jogos eletrônicos, mas que apresentam sérias limitações conceituais e científicas.
Nos consultórios de psicologia há alguns anos chegam adolescentes e crianças com intoxicações eletrônicas que, por exemplo, desenham o pobre ambiente bidimensional dos games (riscando o que acabaram de desenhar, considerando como já eliminado do “jogo”); desenham mães sempre com o celular na mão; crianças narrando suas brincadeiras como se fossem programas de televisão ou “games” com diversas fases diferentes.
Os pais chegam ao consultório pedindo socorro porque seus filhos estão com dificuldades de aprendizagem, déficit de atenção e impulsividade, o que, a princípio, parecem ser sintomas de TDAH, mas que tem uma melhora expressiva com a diminuição do uso de jogos eletrônicos. Outros sintomas que também diminuem muito com a restrição ao uso das telinhas são a falta de memória, a agressividade, problemas com o sono e distúrbios alimentares (inapetência ou obesidade). Constantemente as mães reclamam dos filhos que não obedecem, são impacientes, brigam o tempo todo porque não querem sair de casa ou fazer qualquer outra coisa que não seja jogar.
Em 2014 o Manual Diagnóstico e estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 já descreveu o Transtorno do jogo pela internet, tendo como sintomas: Uso excessivo e continuado de jogos eletrônicos; Sintomas de abstinência; Tentativas fracassadas de controlar a participação nos jogos via internet; Perda de interesse por passatempos e divertimentos anteriores; Uso de jogos para evitar ou aliviar humor negativo (sentimentos de desamparo, culpa, ansiedade ou outros). O uso de jogos eletrônicos vem sendo associado à ansiedade, agressividade e ao aumento do índice de suicídio entre crianças e adolescentes.
O transtorno descrito pelo DSM-5 nos mostra claramente que os jogos eletrônicos são viciantes, assim como qualquer jogo de azar ou uso de drogas (lícitas ou ilícitas). Os jogos eletrônicos provocam uma descarga de dopamina, conhecida como um dos hormônios da felicidade que quando é liberado provoca a sensação de prazer, satisfação e aumenta a motivação, provocando a adição, o vício. O que nos lembra o conto de Hans Christian Andersen, “A pequena vendedora de fósforos”. Neste conto a pequena vendedora de fósforos está em uma noite muito fria de inverno sozinha na rua, não quer voltar para casa porque não conseguiu vender nenhuma caixa de fósforos e tem medo de ser punida por não ter vendido nada. Ela começa a acender os fósforos e a ter lindas visões, seus desejos se apresentam diante dos seus olhos na luz da chama do fósforo aceso, que a levam a acender novos fósforos em um jogo de ilusões que a vão mantendo ali, no frio, desprotegida, até não resistir mais. Ela é encontrada sem vida com um sorriso gélido nos lábios no dia seguinte. Uma imagem triste e verdadeira também causada pelo jogo eletrônico onde o jogador tem a ilusão de “ganhar”.
A utilização de jogos eletrônicos afeta e altera a estrutura cerebral, levando a um espessamento de zonas cerebrais do córtex pré-frontal, forte espessura cortical observada nos gamers associada a uma diminuição do QI (Takeuchi, H. et al. Impact of Videogame Play on the brain’s microstructural Properties. Molecular Psychiatry, v.21, 2016.) Esta relação negativa foi igualmente descrita para amantes de televisão (Takeuchi, H. et al. The impact of Television Viewing on Brain Structures. Cerebral Cortex, v. 25, 2015.) e os usuários patológicos de internet (LI, W. et. al. Brain Structures and Functional Connectivity Associated with Individual Differences in Internet Tendency in Healthy Young Adults. Neuropsychologia, v. 70, 2015.)
A Microsoft, o Massachusetts Institute of Technology e muitas outras empresas investiram para criar jogos eletrônicos educativos, no entanto, como salientou a Academia Americana de Pediatria, “análises de centenas de aplicativos para crianças pequenas e em período pré-escolar rotulados como educacionais demonstraram que a maioria deles apresenta baixo potencial educativo, visa somente habilidades de memorização (por exemplo: ABC, cores), não se baseia em currículos estabelecidos e não inclui praticamente nenhum dado da parte de especialistas em desenvolvimento ou de educadores.” American Academy of Pediatrics. Council on Communications and Media. Children and adolescents and Digital Media. Pediatrics, v.138, 2016.
Em relação ao ensino fundamental havia uma grande expectativa de que a TIC – tecnologia de informação e de comunicação para o ensino revolucionaria o ensino. Mas, “apesar dos investimentos consideráveis em computadores, conexões à Internet e softwares para fins educativos, há pouca evidência sólida de que o uso mais amplo de computadores pelos alunos conduza a melhores notas em matemática e leitura” (Desmurget 2022).
É a qualidade do corpo docente que constitui a característica fundamental comum nos sistemas educacionais mais desenvolvidos do planeta. É a relação professor – aluno que proporciona as condições necessárias para o aprendizado.
Wallon considera a emoção como a gênese da inteligência, ou seja, a atividade intelectual surge como uma mediação das relações humanas de caráter afetivo que tiram a criança do seu “circuito fechado”, da sua sensibilidade orgânica, permitindo a emergência da inteligência. Ou seja, o calor anímico traz sentido e significado ao aprendizado.
Como afirma Rudolf Steiner, “O desenvolvimento físico caminha paralelamente ao desenvolvimento anímico-espiritual. Tudo o que se evidencia anímico-espiritualmente tem sua contra imagem perfeita no corpo físico; os dois se expressam concomitantemente, e concomitantemente irrompem da criança.” GA 310.
A criança precisa de moderação sensorial, de presença humana, vínculos saudáveis, sono adequado, sentir, experimentar e vivenciar concretamente o seu próprio corpo por meio de uma atividade física saudável, brincar, atividades ao ar livre, na natureza para poder se constituir enquanto sujeito, como uma individualidade saudável.
Os hábitos da família influenciam muito no consumo da criança, quanto mais os pais usam celulares e computadores, mais o consumo dos filhos também cresce. Crianças tendem a imitar o comportamento dos pais.
Um dos grandes desafios para os pais na atualidade é, estando conscientes das limitações e dificuldades que o uso de jogos eletrônicos oferece para o desenvolvimento infantil, limitar o uso e o acesso às mídias eletrônicas. Há aplicativos de controle parental que auxiliam na limitação do tempo e na restrição do conteúdo, oferecendo acesso apenas ao que seria adequado à faixa etária da criança. No entanto, ainda é necessário ter muita disciplina e autocontrole, ter força interior para suportar as reclamações e contrariedades dos filhos para limitar o acesso aos jogos eletrônicos e dar o exemplo.
Os grandes consumidores adultos costumam ter uma visão positiva do impacto das telas sobre o desenvolvimento infantil, o que os leva a impor regras de utilização menos restritivas aos seus filhos e a jogar jogos com os filhos afirmando que estão tendo momentos saudáveis de interação com os filhos. No entanto, quando os pais jogam junto com os filhos será que acontecem diálogos ou trocas significativas? Será que o tempo de jogo com os filhos é um tempo de qualidade?
Os tempos de telas partilhadas (videogames ou televisão) aumentam o uso solitário, os filhos querem treinar para mais tarde jogar com os seus pais e amigos.
Um outro fator importante a ser considerado é a disponibilidade física, isto é, ter vários aparelhos de TV, consoles, smartphones ou tablets em casa favorece o consumo, principalmente quando esses aparelhos se encontram no quarto. Não ter aparelhos eletrônicos no quarto dos filhos ajuda a preservar o sono e a controlar o tempo de uso.
Nos primeiros 3 anos de vida, basta não expor a criança aos jogos eletrônicos – tirar da vista e não utilizar diante das crianças. Crianças não desejam o que não conhecem, assim como não utilizam o que não está disponível.
Até os três anos de idade a tecnologia, os jogos eletrônicos e o computador não trazem qualquer benefício para as crianças, porque apresentam uma realidade virtual oferecendo um aprendizado muito restrito que não contribui para desenvolver a capacidade de agir no mundo, a capacidade de realizações concretas. Os jogos eletrônicos limitam e prejudicam quando ocupam o tempo e o espaço que deveria ser destinado ao desenvolvimento motor, emocional e cognitivo. Diminuem a capacidade de concentração pelo excesso de estímulos visuais que oferecem. E ainda afetam o sono porque a luz azul das telas diminui o nível de melatonina no organismo, tornando mais difícil o adormecer e diminuindo a qualidade do sono.
A criança precisa de bons vínculos, da presença do adulto, de um ambiente estimulante que incentive o movimento trazendo possibilidades diversas, possibilitando o desenvolvimento da motricidade grossa e fina. A natureza deve estar presente para que suas experiências possam ser ricas e diversificadas, para que ela possa ser criativa e ter fantasia para que na adolescência o pensamento autônomo lógico-abstrato possa ser desenvolvido.
A ideia de que os nativos digitais, as crianças que já nasceram na era digital seriam talentosos especialistas das mais complexas entre as novas tecnologias com os seus cérebros aumentados em força, volume e capacidade, mostrou-se um mito infundado, pois, o que se sabe hoje é que uma conversão tardia ao digital não irá impedir uma criança ou adolescente de se tornar tão ágil quanto o mais experiente dos “nativos digitais”. Por outro lado, uma imersão precoce o desviará fatalmente dos aprendizados essenciais que, por conta do fechamento progressivo das “janelas” de desenvolvimento cerebral, se tornarão mais difíceis de alcançar.
A criança desenvolve a sua fantasia, imaginação e a capacidade de socialização por meio de brincadeiras que envolvem movimento, ação e interação. Este brincar que tem origem na iniciativa própria da criança é um brincar muito rico que proporciona o desenvolvimento de capacidades cognitivas, a criança aprende a aprender brincando no mundo físico, tridimensional, preparando a criança para se relacionar, desenvolvendo habilidades sociais, e também para o aprendizado escolar do ensino fundamental e médio através das experiências concretas vividas.
Como tudo o que é proibido desperta ainda mais curiosidade e interesse, não devemos proibir o uso do computador, mas, na primeira infância o seu uso deve ser bastante limitado e controlado para evitar excessos e prejuízos.
Estudos mostram que pais autoritários que impõem regras rígidas não obtêm muito sucesso no controle da utilização dos jogos eletrônicos e que os pais que são persuasivos, isto é, que restringem a oferta e oferecem alternativas têm mais sucesso. Na Primeiríssima Infância o controle deve ser dos pais, mantendo longe dos olhos dos filhos os jogos eletrônicos oferecendo alternativas (brinquedos educativos, livros infantis adequados à faixa etária e muitas possibilidades de estar e brincar na natureza). Dos 3 aos seis anos regras simples e claras funcionam bem, como por exemplo: “Dia que tem aula não tem jogos eletrônicos.” A partir dos 7 anos é possível explicar de forma simples e direta porque os jogos não são adequados, salientando sobretudo o que pode ser vivido de bom e agradável sem a utilização dos jogos eletrônicos, falando sobre a necessidade de restringir o uso destes dispositivos eletrônicos.
O ideal é não oferecer como uma atividade recreativa regular a utilização de jogos eletrônicos às crianças até pelo menos 6 ou 7 anos. Antes dos 7 anos, quando a criança estiver diante de uma tela que esteja acompanhada de um adulto que possa limitar o tempo e garantir escolhas mais saudáveis dos jogos utilizados, nunca desacompanhada. Sem telas, ainda é a melhor opção. Como sugestão, nessa faixa etária pode funcionar muito bem a regra: dia que tem aula não tem jogos eletrônicos, tablets ou computador.
O que melhor pode substituir as telas é a presença dos adultos, a disponibilidade para fazer alguma coisa juntos. É muito importante que as crianças e os adolescentes tenham a experiência de que é possível estar bem e satisfeito sem telas ou jogos eletrônicos, vale a pena estabelecer pelo menos um dia da semana livre de telas (os adultos devem dar o exemplo).
O tempo de utilização considerado seguro pelos pesquisadores: dos 6 aos 12 anos é de no máximo de 30 minutos por dia e a partir dos 12 anos, no máximo de 1 hora por dia. Hoje há vários aplicativos de controle parental que ajudam a limitar o acesso a sites e programas inadequados a idade das crianças.
A boa notícia é que crianças até 7 anos podem até reclamar quando os pais propõem atividades que não envolvam os jogos eletrônicos, mas, rapidamente se empolgam com a possibilidade de brincar em um parque ou praça, encontrar outras crianças ou ter a presença de um adulto de referência que ofereça o seu tempo e atenção. Com certeza, um esporte pode ser uma excelente forma de tirar as crianças da frente das telas, assim como um instrumento musical ou alguma outra atividade artística (pintura, argila ou artesanato, por exemplo).
As pesquisas sobre os jogos eletrônicos são alarmantes, comprovando a necessidade de observarmos os seus efeitos na saúde física e social, ou seja, na diminuição das atividades sociais, nas dificuldades crescentes nas relações sociais e no afastamento das crianças e jovens de seus pais por conta do uso excessivo e inadequado das mídias e jogos eletrônicos.
No entanto, a tecnologia traz benefícios inegáveis para a sociedade como um todo, principalmente, para o desenvolvimento do trabalho na vida adulta, que possamos preservar a infância e a adolescência e colocar a tecnologia à serviço das mais elevadas capacidades humanas com consciência, responsabilidade e ética.
No coração tece o sentir
Na cabeça luze o pensar
Nos membros vigora o querer
Luzir que tece
Tecer que vigora
Vigorar que luze
Eis o homem
Rudolf Steiner
Bibliografia
DESMURGET, Michel – “A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para nossas crianças” – 1o edição; 3o reimpressão – São Paulo: Vestígio, 2022.
FRIEDMAN, A. e col. “Caminhos para uma aliança pela infância” São Paulo: Aliança pela Infância, 2003.
GIMAEL, Patrícia Couto & AGUIAR, Selma de – “Infância Vivenciada” – São Paulo – Editora Antroposófica, 2023.
STEINER, Rudolf – “A tecnologia e a alma humana” tradução Bernardo Kaliks – São Paulo – João de Barro Editora, 2007.
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM – 5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações digitais – Organizadoras: Ângela Baptista e Julieta Jerusalinsky – Salvador Ágalma, 2017.
Crescer saudavelmente no mundo das mídias digitais: um guia de orientação para pais e demais responsáveis por crianças e jovens – Michaela Glöeckler, Hedwin Hübner e Stefan Feinauer; redação final Klaus Scheler – Ad Verbum Editorial, 2020.
Texto sensacional e muito adequado ao tempo atual, a maioria das crianças de hoje são viciadas no celular, assim como os pais também o são.