AS DIMENSÕES PSICOLÓGICAS DO CUIDAR
Patrícia Couto Gimael
Resumo
O texto trata sobre a importância estruturante do cuidar para a constituição do indivíduo e também da sociedade.
A relação dos sentidos básicos (tato, equilíbrio, movimento e sentido vital) desenvolvidos na protoinfância (de 0 a 3 anos) e a transformação destes nos sentidos superiores (Eu, palavra, audição e pensar).
A neurociência confirma a importância da protoinfância mostrando que a estrutura básica do cérebro é formada nos três primeiros anos de vida e que os primeiros vínculos estabelecidos através dos cuidados básicos tem um papel muito importante, oferecendo o estímulo necessário ao desenvolvimento físico, psíquico e espiritual do ser humano.
Apresentação do tema
A autora coordena e desenvolve projetos sociais de formação continuada para professores da rede pública e educadores de instituições de acolhimento com base na Pedagogia Waldorf e na Abordagem Pikler-Lóczy. O cuidar através da sua importância e significado na constituição da subjetividade do sujeito tem um aspecto estruturante para o pleno desenvolvimento da protoinfância (0 a 3 anos). É este um dos principais pilares que norteia o trabalho da autora.
Introdução
O ser humano é um ser espiritual e físico que se constitui como ser humano na presença e interação com outros seres humanos. Nascemos dependentes de cuidados e é por meio dos cuidados diários que os primeiros vínculos afetivos se formam.
Nos três primeiros anos de vida a criança irá desenvolver o que há de mais humano. A capacidade de andar, falar e pensar. São estas capacidades que diferenciam o ser humano dos animais.
Ao nascer o bebê ainda se sente parte da mãe, não tem noção da sua individualidade e precisa de um adulto de referência que garanta a sua sobrevivência e valorize a sua existência dando a ele um nome e oferecendo os cuidados adequados. O ser humano é um ser social que se constitui enquanto sujeito pela presença e interação com outros seres humanos, através dos cuidados básicos. Ao banhar, vestir, nutrir, trocar e acalentar um bebê estamos oferecendo as condições básicas e necessárias ao seu desenvolvimento como ser humano.
O bebê precisa ser tocado, pois ao nascer ainda não desenvolveu a noção de limite, não estabeleceu um divisor entre ambiente e corpo físico. Ao tocarmos o bebê, estamos proporcionando a sensação do limite corporal, de contorno físico, e assim, colaborando para a formação da sua imagem corporal. Assim que ele começa a tocar e manusear objetos, é necessário que a mãe ou o adulto responsável selecione brinquedos e objetos de texturas diferentes que ofereçam a possibilidade do desenvolvimento do sentido do tato.
O ritmo nos cuidados diários com o bebê, a rotina de cuidados, proporciona tranquilidade e segurança, isto é, os sentidos do movimento e do equilíbrio.
Mover o bebê com firmeza e segurança e possibilitar que ele mesmo se mova em um ambiente seguro e acolhedor, numa superfície firme e segura, no chão, onde ele possa encontrar o equilíbrio por si mesmo, o que irá ajudar no desenvolvimento da autonomia, trará sentimentos de segurança e capacidade.
Cuidar da saúde física, da alimentação, do vestir e agasalhar adequadamente proporcionará para a criança a vivência de bem-estar físico, o desenvolvimento do sentido vital, o sentimento de estar vivo e pulsante.
É por meio dos cuidados diários que os primeiros vínculos afetivos se formam e o sentimento de gratidão pode se desenvolver.
E são os sentidos que, pouco a pouco, vão introjetando as percepções do dia-a-dia pela via sensória. Tudo o que chega através dos nossos sentidos, o que vemos, tocamos, ouvimos, experimentamos exerce um reflexo físico e também psíquico (sensações e sentimentos) que vão construindo o que aprendemos a reconhecer e dominar como próprio: a casa onde habitamos, o corpo.
“Na primeira infância a criança, como um todo, é, de maneira totalmente inconsciente, um órgão sensório. Em seu interior ela reproduz o que percebe principalmente nas pessoas ao seu redor. Não obstante, tais imagens interiores não são meras imagens; são ao mesmo tempo, forças que organizam física e plasticamente a criança em seu interior”
Rudolf Steiner
Rudolf Steiner nos fala de 12 sentidos. Quatro dos sentidos são chamados de intermediários, são eles: a visão, olfato, paladar e térmico. Estes sentidos nos trazem o mundo de fora para dentro.
Os quatro sentidos básicos, são os sentidos que nos informam diretamente as condições do nosso corpo são chamados de sentidos corpóreos, são eles: o tato, movimento, equilíbrio e o sentido vital (sinaliza o bem ou mal estar do corpo). Quando estes quatro sentidos são observados e cultivados no ato de cuidar, irão proporcionar no futuro o desenvolvimento dos sentidos superiores, os sentidos que nos permitem o desenvolvimento do mundo invisível ou espiritual, são eles: Eu (percepção do outro), palavra (comunicação), audição (capacidade de ouvir o outro) e pensar.
Como a criança acolhe no seu interior o que acontece ao seu redor, quando o bebê é cuidado de forma calorosa, cuidadosa e atenciosa, isto é, com verdadeira devoção, ele formará uma imagem positiva de si mesmo e do mundo em que ele acaba de chegar. Por outro lado, se o bebê for cuidado de forma rude, com pressa, impaciência, como se fosse um estorvo, um incomodo, a imagem de si e do mundo que ele irá formar será negativa e o seu desenvolvimento ficará comprometido.
Os cuidados maternos nos três primeiros anos de vida são fundamentais para a saúde física e psíquica. Bebês que não recebem os cuidados e a atenção necessária, podem deixar de interagir, de estabelecer contato visual, de responder a estímulos externos, parar de se alimentar, muitas vezes adoecem e em casos extremos, se não obtiverem cuidados intensivos, podem vir até mesmo a falecer. Após a II Guerra Mundial, casos como estes puderam ser observados em abrigos lotados na Romênia em que as educadoras não tinham tempo para dar atenção à grande quantidade de bebês que havia nestas instituições.
A privação da figura materna tem efeitos particularmente negativos. No desenvolvimento intelectual os processos de desenvolvimento da linguagem e da capacidade de abstração são os mais afetados. No processo de desenvolvimento da personalidade é a capacidade de estabelecer e manter relações interpessoais profundas e significativas e a capacidade de controlar os impulsos pessoais em benefício de objetivos de longo alcance que será mais afetada.
O período em que se inicia a privação determina o grau do comprometimento, a privação durante o primeiro ano de vida afeta mais o desenvolvimento da linguagem e o raciocínio abstrato e indiretamente o QI do que se ocorrer mais tarde (Bowlby, 1988).
É possível prevenir ou minimizar estes efeitos da institucionalização precoce de crianças proporcionando um cuidador de referência. Este pode garantir e promover a segurança afetiva, através da qualidade do vínculo de apego, da disponibilidade do cuidador e do olhar interessado e amoroso para com o bebê.
Se o bebê se sente afetivamente seguro, ele procura, por si mesmo, desenvolver sua coordenação motora grossa e fina, como sentar, ficar de pé, andar, subir, pegar objetos etc. E também se interessa por conhecer pessoas e objetos que o cercam e estabelecer relações com o espaço e o tempo. Desta forma, a criança adquire equilíbrio psíquico e a atividade motora livre embasa o seu desenvolvimento intelectual.
Quanto à recuperação dos efeitos da privação da figura materna, estudos mostram que as deficiências sociais podem ser mais difíceis de reverter, do que as cognitivas (Frank, ET al., 1996).
Neurocientistas tem pesquisado sobre o desenvolvimento do cérebro infantil e chegaram à conclusão que o cuidado caloroso e responsivo exerce uma função biológica protetora, diminuindo ou eliminando os efeitos adversos do stress ou de traumas posteriores. Gunnar (1996) avaliou as reações de crianças a acontecimentos adversos, físicos ou psicológicos, medindo a taxa de um hormônio esteroide presente na saliva, chamado cortisol. Acontecimentos adversos ou traumáticos elevam a taxa de cortisol no organismo do indivíduo, o cortisol altera o cérebro, tornando-o vulnerável a processos que destroem os neurônios reduzindo o número de sinapses em certas regiões do cérebro, o que significa que experiências traumáticas ou estressantes podem minar o desenvolvimento neurológico e deteriorar o funcionamento cerebral.
As descobertas de Gunnar mostram que crianças que tiveram cuidados adequados e sensíveis no primeiro ano de vida, são menos propensas a responder a um pequeno stress produzindo cortisol, e mesmo quando respondem produzindo este hormônio, podem mais rápida e eficientemente desativar esta resposta. “Esse efeito protetor acompanha-os até o fim da infância: crianças na escola elementar, com histórias de ligação segura com o cuidador, são menos propensas a apresentarem problemas comportamentais (Shore, 2000, pág.65.)”
Rudolf Steiner em sua palestra sobre impulsos sociais e antissociais nos conta que as forças antissociais são mais naturais e necessárias ao desenvolvimento humano e que cultivar as forças sociais é a tarefa de desenvolvimento da atualidade, da Alma da Consciência.
Martin Luther King descreve de forma poética e clara a tarefa da Alma da Consciência a qual Steiner se refere.
“Todos os homens estão interligados numa teia sem escape de mutualidade, entrelaçados num único tecido do destino. O que quer que afete alguém diretamente, afeta a todos indiretamente, não posso nunca ser o que deveria ser até você ser o que deveria ser e você não pode nunca ser o que deveria ser até que eu seja o que devo ser.”
Martin Luther King
Conclusão
Precisamos equilibrar as forças sociais e antissociais cuidando de nós mesmos, da infância e dos outros. É necessária uma atitude altruísta para dar espaço ao outro, ou seja, o meu Eu precisa dormir para dar espaço para o cuidar. Os cuidados nos tornam humanos, ao cuidar nós nos responsabilizamos por nós mesmos pelo outro e pela nossa sociedade.
Ter consciência da importância e do significado do cuidar é uma atitude de responsabilidade social, pois ao cuidarmos da infância estaremos criando uma sociedade mais
justa, equilibrada e humana. E ao cuidarmos dos outros, assim como de nós mesmos, estaremos desenvolvendo e cultivando qualidades espirituais no ser humano.
Bibliografia de referência:
BOFF, Leonardo. “Saber Cuidar” Petrópolis. Editora Vozes, 2.000
BOWLBY, John. “Cuidados Maternos e saúde mental”. São Paulo, SP: Martins Fontes Editora, 1988.
FALK, Judit. –“Mirar al Nino – La Escala de Desarrollo”. Instituto Pikler (Lóczy). Argentina. Ediciones Ariana, 1997.
KÁLLÓ, E.; BALOG, G. – Los Orígenes del Juego Libre Magyarországi – Pikler-Lóczy Társaság Budapest, 2013.
SHORE, Rima. “Repensando o Cérebro – Novas Visões sobre o Desenvolvimento Inicial do Cérebro”. Porto Alegre. Editora Mercado Aberto, 2000.
STEINER, Rudolf. “Impulsos Sociais e Antissociais no Ser Humano” – Palestra proferida em Bern em 12 de dezembro de 1918. Editora Rudolf Steiner – Dornach, Suiça.
STEINER, Rudolf. “Os Primeiros Anos da Infância – Material de estudo dos jardins de infância Waldorf” Editora Antroposófica, 2013.
STEINER, Rudolf. “Os doze sentidos e os sete processos vitais” Conferência proferida em Dornach (Suiça) em 12 de agosto de 1916. São Paulo – SP. Editora Antroposófica, 1997.